Impressões sobre A Pereira da Tia Miséria

Pedimos a algumas pessoas que assistiram ao espetáculo A Pereira da Tia Miséria para que deixassem suas impressões, comentários, críticas, indicações...



A escritora paulista Yara Camillo (tradutora do conto popular espanhol que nos inspirou a contar essa história) é a primeira a deixar suas impressões:


"A adaptação e montagem do conto popular espanhol, A Pereira da Tia Miséria, pelo Núcleo Ás de Paus, preserva e honra a tradição desse gênero, desde o texto, trabalho raro da Palavra, até o trabalho de Corpo, com os atores se movimentando muito à vontade, em pernas-de-pau, como se brincassem em cena. Que no Teatro se brinca a sério, se rapta e conduz o espectador até a plataforma de decolagem. E voa o espectador, enquanto os atores engendram novos encantamentos para a próxima cena.
A idade ideal para se assistir A Pereira da Tia Miséria? Todas, porque o espetáculo tampouco tem idade e chega a resvalar no atemporal.
A platéia – essa entidade que se forma e se recria diante de todos os palcos – complementa a magia. Talvez seja este outro mérito do Conto Popular: o de falar a todas as idades, porque os contos vêm de épocas em que as pessoas ouviam, em volta do fogo, da mesa – ou em qualquer cenário onde ocorresse essa comunhão –, as estórias trazidas e levadas pelos contadores, jograis, andarilhos, menestréis, saltimbancos, precursores dessa linha que agora o Ás de Paus leva adiante.
Outra magia da Arte, e já do Afeto: a de fazer viver o que se evoca. É assim que Tia Miséria, mais viva do que nunca, acontece. O espetáculo tem ritmo, a cenografia e os figurinos são impressionantes. As linhas de interpretação são claras e mergulham fundo; o resultado é Arte. Percebe-se uma linha de direção que, no entanto, é coletiva: criação coletiva, surpreendente e possível porque, além do talento, o grupo consegue uma unicidade – que não ocorreria, sem um reconhecimento recíproco das percepções individuais.
Há um momento no espetáculo em que a música, entoada pelo coro, assim anuncia a entrada de um personagem:

[O que é desprezível não se deve desprezar.
O que é invisível é preciso enxergar.]

Recado precioso, nesse tempo. Em todos os tempos.
Esse trabalho do Ás de Paus precisa cumprir seu destino de ir longe e para muitos, porque leva em si a essência do Teatro, nas cores e no texto, na música e cenografia, nos figurinos e na interpretação, na concepção do cômico e do trágico. Na beleza, enfim.
O Teatro habita a alma e o trabalho do Núcleo Ás de Paus. A Arte se faz. Saímos mais ricos e com as mãos cheias de frutos depois de conhecer A Pereira da Tia Miséria, através da visão desses artistas."

Yara Camillo

 Agradecemos de coração a querida Yara por sua sensibilidade!

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E agora..

...a Diva londrinense Simone Mazzer, cantora e atriz, atualmente radicada no Rio de Janeiro, integrante da Armazém Cia. de Teatro, é quem deixa suas impressões:

"Ás de Paus – a carta mais alta do jogo.
O que mais me encanta no teatro são as possibilidades de jogo. Jogo entre os atores, jogo com a platéia, jogo diretor – ator, jogo produção – encenação, jogo do texto com o cenário, a luz, a música, o figurino... enfim: jogo. E para que o jogo aconteça, a disponibilidade é fundamental.
E o que mais me chama a atenção no espetáculo A PEREIRA DA TIA MISÉRIA é a disponibilidade do elenco.
A disponibilidade para estar presente e para nos contar aquela história. Sempre com o frescor da primeira vez.
Para mim, o que fica é a doçura das vozes tão bem trabalhadas sem auxílio de microfones e efeitos tecnológicos, tão precisas e tão claras. A palavra é compreendida tão facilmente que você nem percebe. A comunicação é efetivada. A precisão técnica do canto em várias vozes, a afinação mantida com graça e tranqüilidade. Tudo isso sobre pernas-de-pau...
A missão de levar para a rua essa arte não é uma missão fácil. O teatro por si só, já não é... calcule isso feito sem o devido suporte financeiro...
Então, vamos dar graças aos deuses do teatro ou então ao Deus, ou ainda ao deus de cada um.
Viva a entrega desses atores-equilibristas que ultrapassam o conforto do chão, para nas alturas tirarem proveito do desequilíbrio e driblarem as dificuldades de se apresentar ao ar livre com suas vozes perfeitas, abismarem-se."

Simone Mazzer

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Ana Carolina Di Giorgi, educadora social de teatro, amiga do Núcleo, enviou-nos suas impressões sobre a apresentação que fizemos no Jardim Novo Amparo de Londrina:


"Uma das maiores dificuldades por mim encontradas no início da minha oficina (teatro) em um projeto socioeducativo era o fato de que quase 100% dos meus educandos não fazia idéia do significado da palavra TEATRO, nem tinha tido qualquer contato com montagens nem nada que se assemelha-se a isso.
Essa realidade começou a mudar quando um grupo de teatro de rua aceitou o convite da instituição da qual faço parte e foi até o bairro apresentar uma peça chamada “A Pereira da Tia Miséria” uma montagem apresentada em pernas de pau, com o texto todo em rimas, com muitas músicas e uso de bonecos. A montagem os prendeu e os surpreendeu. Apesar do sol escaldante, tinham os olhos fixos, vidrados naquelas figuras gigantes que os amedrontava e os encantava simultaneamente. Era tudo novo, era tudo mágico.
Resultado foi impressionante. Nos dias que se seguiram as crianças que haviam assistido contaram a história às demais, cantarolavam as músicas da peça e o interesse nas atividades propostas durante as oficinas aumentou consideravelmente. Expressões ditas na peça e os nomes dos personagens forma repetidos um sem-número de vezes. Até um cachorro que vivia nos arredores do projeto foi batizado de “Sem- Nome” que é o nome do cachorro da personagem principal “Tia Miséria”. Me pediam para procurar a peça no youtube, queriam informações sobre onde e quando seriam as próximas apresentações, queriam conhecer e entender esse novo mundo que se abrira diante deles.
Hoje, quase sete meses depois do grupo se apresentar no bairro, ao falar sobre postura do ator e criação de personagem, eis que chegamos ao assunto da peça, e qual não foi minha surpresa ao perceber que todos eles continuam com as músicas da montagem na ponta da língua. Pude perceber que aquele momento, em que o campinho do bairro se transformou em palco, ficou marcado na memória. Eles ainda lembram nomes e a música (ainda que com tropeços na letra) de cada uma das personagens.
Obrigada, Ás de Paus. Obrigada pelas impressões neles causadas. A impressão que fica em mim, são rostos iluminados, olhares, sorrisos. É isso que vocês trouxeram a um bairro acostumado à dor.
Ana Carolina Di Giorgi

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Veja pelo blog Triolé Cultural as impressões de Gerson Bernardes ao assistir "A Pereira..." na programação da Londrina Mostra Teatro e Circo 2011:
http://triolecultural.blogspot.com/2011/03/pereira-da-tia-miseria-por-gerson.html

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Confiram a opinião do crítico do XVIII Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente-SP, Igor de Almeida, a respeito do espetáculo "A Pereira da Tia Miséria":

Crítica: Uma Alegoria sob Pernas-de-Pau

No espetáculo de rua A pereira da Tia Miséria, baseado em conto espanhol homônimo, do Núcleo Ás de Paus, de Londrina, Paraná, a praça do Distrito de Eneida torna-se palco de uma fusão entre circo, teatro e cultura popular.
De imediato, o espetáculo chama a atenção pelo virtuosismo e resistência física dos atores no uso da técnica de pernas-de-pau; no manejo das marionetes disposta em suas próprias pernas como prolongamentos dos seus corpos; pelas belas vozes muito bem treinadas, pontuando a montagem com várias passagens cantadas, e pela própria qualidade dos desempenhos. Os atores conseguem imprimir agilidade e ritmo do alto de suas pernas artificiais, executando movimentos comuns do dia a dia, como por exemplo, correr, se agachar, ajoelhar, subir em árvore, sentar. Exuberante e criativos são os cenários e figurinos. Constituídos e reaproveitados de materiais os mais diversos, resultam em cena de modo inesperado. Exemplo é a capa do personagem Morte, feito com tecido preto proveniente de guarda-chuvas. Toda essa imensa capa é permeada por bolsos, lembrando aqueles acessórios em que se penduram e guardam calçados. E, em cada bolso, há o nome das almas levadas pela Morte. Literalmente, elas “bateram as botas”.
Ao centro da praça, uma grande estrutura metálica, expandida em várias direções por meio de guarda-chuvas verdes, esburacados, como se fossem galhos e folhas de uma árvore. Trata-se de uma pereira. Seus frutos também se encontram igualmente representados, porém com uma aparência muito mais robusta do que a seca árvore em metal. No espetáculo, esta árvore pertence à Tia Miséria, velha que, como o próprio nome indica, vive de pedir esmolas e cujos únicos bens são os frutos que retira de sua pereira. No entanto, é uma senhora misericordiosa capaz de compartilhar o pouco que possui. Apenas se enfurece com as crianças da vizinhança que, ao invés de pedirem suas peras para aplacar a fome, preferem furtá-las. Apiedando-se de um andarilho faminto, embriagado e sem fé, acolhe-o em sua casa. Descobre-se ser este um santo disfarçado que lhe concede uma graça. A princípio, Tia Miséria pede-lhe para encontrar seu filho, a Fome. Contudo, esta é uma graça impossível mesmo para os santos, pois a Fome já faz parte do mundo. Tia Miséria então pede para que o santo encante sua pereira, para que todos que nela subam lá fiquem presos, sendo libertados apenas sob a sua autorização. Graça concedida, Tia Miséria é visitada certa noite pela Morte. Não disposta a partir sem antes rever seu filho, a velha senhora engana sua visitante, fazendo-a subir em sua pereira para colher-lhe um último fruto. Aprisionada, muito tempo se passa sem que a Morte possa retomar suas funções, provocando o desequilíbrio: ninguém mais consegue morrer, e a vida ininterrupta, perene e estática, torna-se um fardo. De tanto ouvir reclamações daqueles que não podem morrer, Tia Miséria liberta a Morte sob a condição desta só vir buscá-la quando ela assim o quiser. Tia Miséria resiste a Morte junto com sua pereira à espera de um dia reencontrar seu filho, a Fome.
Fazendo jus as origens do conto original, o espetáculo constitui-se em uma alegoria sobre a vida e seus ciclos, remetendo a cultura popular cômica da Idade Média e do Renascimento, que tem como principal tema o fluxo contínuo da natureza, isto é, a trindade nascimento, morte e renascimento. Essência dialética do movimento e da transformação. Etimologicamente, alegoria significa “dizer o outro”, ou seja, representa algo para dar a ideia de outra coisa, veiculando sempre um conteúdo moral e didático. Caracteriza-se também por representar ideias abstratas de modo figurado, isto é, concreto, como por exemplo, os personagens Tia Miséria, a Fome e a Morte.
O mais interessante nesta peça é justamente a maneira como o Núcleo Ás de Paus decidiu encenar esta fábula popular. Para falar da vida, utiliza-se do que é o seu contrário: o inumano. Os atores têm seus corpos prolongados por pernas-de-pau; quase todos os personagens humanos são representados por autômatos, e a pereira (a irrupção da natureza no espetáculo, alegoria da força e do fluxo da vida sob a forma de uma árvore frutífera), ao invés de existir em cena a partir de matéria orgânica (a madeira), é constituída de metal (claro que essa escolha se dá pela própria segurança dos atores, que escalam e sentam sob esta árvore em diversos momentos da encenação; porém, o metal não deixa de exercer uma significação na cena). Em certa medida, o grupo retoma para si alguns dos princípios de Tadeusz Kantor e de seu teatro da morte acerca do uso do manequim no teatro. Como ele mesmo diz: “Sua aparição está de acordo com essa minha cada vez mais forte convicção de que a vida só pode se exprimir em arte pela falta de vida e pelo recurso à morte [...]. No meu teatro, um manequim deve se tornar um MODELO que encarna e transmite um profundo sentimento da morte e da condição dos mortos - um modelo para o ATOR VIVO”. Por intermédio da morte e da falta que nos move (Tia Miséria, a Fome), A pereira da Tia Miséria não fala de outra coisa que não seja da vida.

Igor de Almeida


Saiba mais sobre a crítica deste e de outro espetáculos deste último FENTEPP em:

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